Entrevista com Aldyr Garcia Schlee - o escritor da fronteira (premiado escritor fronteiriço, entre B
"Meus personagens são os rejeitados".
Em três décadas de uma carreira paciente,
Aldyr Garcia Schlee tornou-se
um dos grandes contistas do Rio
Grande do e do Brasil. Nesta entrevista
ao jornal Zero Hora
(26/10/2013), ele fala da Fronteira
imaginada de sua literatura.
Carlos André Moreira (ZH) – Seu
primeiro livro sai em 1983, em uma
época em que o senhor já contava
por volta de 50 anos e tinha uma
carreira como ilustrador e artista
gráfico. Por que tão tarde?
Aldyr Garcia Schlee – Acho que
porque, naquela época, não havia
muita oportunidade de publicação,
ao contrário do que acontece hoje.
Era caro e impensável alguém se
lançar literariamente mandando
imprimir por conta seu próprio
livro. Não passava pela minha cabeça
isso. Por isso, concorri em alguns
concursos literários, em todos
com alguma marca que me incentivou
a continuar. Tentei primeiro
aqui no RS, com um livro chamado
Jaguarão e o Resto do Mundo, que
ganhou menção honrosa. Depois,
concorri duas vezes ao prêmio José
Lins do Rego, também com um
livro chamado Jaguarão Universo,
em que, de certa maneira, recolhi
uma parte do Jaguarão e o Resto
do Mundo, e esses dois acabaram
sendo publicados posteriormente
em cada uma das partes do Contos
de Sempre. Então, eu esperava uma
oportunidade de publicar.
CAM (ZH) – Contos de Sempre e
Uma Terra Só, seus dois primeiros
livros, parecem comungar de um
propósito comum: mostrar a fronteira
como uma região de identidade
única no tempo, no caso de
Contos de Sempre, e no espaço, em
Uma Terra Só. Foi um projeto
consciente?
Schlee – Eu não gosto de dizer que
eu tenha um projeto literário, que
tenha pretendido exatamente: “vou
fazer assim”. Não consigo entender
nenhum colega meu, nenhum autor
que tenha um projeto literário, não
creio nessa definição. Comigo, o
que aconteceu foi que eu tinha esses
dois livros de contos que haviam
vencido concursos, e os dividi no
primeiro livro, mas tinha o impacto
do tempo decorrido, e eu os inverti
no volume, a seção que eu denominei
Contos de Ontem eram os mais
recentes, e os Contos de Hoje eram
os mais antigos. Essa era uma perspectiva
estritamente temporal. Já
no livro seguinte, Uma Terra Só,
eu tinha pretensão de fazer o leitor
atentar para um mundo que não é
o verdadeiro, e sim o meu mundo
imaginado, meu mundo literário,
que eu pretendi conquistar e acabei
por ele conquistado, porque não
tenho condições de sair dele.
CAM (ZH) – É estranho o senhor
falar na ausência de um “projeto”,
já que os seus livros caracterizam-se
por uma unidade temática (O Dia
em que o Papa Foi a Melo, Contos
de Futebol).
Schlee – São livros em que trabalho
em cima de uma tese. Há um determinado
momento nesse meu
mundo literário em que descubro
alguma coisa para desenvolver em
forma de tese, para demonstrar ao
leitor minha visão de mundo. Nesse
aspecto, há um certo conteúdo pedagógico.
É uma pretensão grande, mas eu vejo assim.
Então, quando eu parto para um livro como
O Dia em que o Papa Foi a Melo, estou
perplexo diante dessa visita do
Papa, sendo o Uruguai um país
laico declaradamente. Não só porque
está expresso na Constituição,
mas porque o Uruguai é laico de
fato, e em 1904 já não havia mais
crucifixos em repartições públicas,
uma discussão que fomos ter agora
aqui no Brasil. Sabendo que nesse
país laico, na sua zona mais pobre,
paupérrima, o papa iria fazer uma
visita, fiquei atônito. Então resolvi
não ir a Melo no dia 8 de maio de
1988, o dia em que ele foi. Mas fui
na semana seguinte. E consegui entrevistas
e toda uma documentação
para escrever um livro de contos.
CAM (ZH) – O Dia em que o
Papa Foi a Melo é um relato da visita
da maior autoridade da cristandade
ao Uruguai, mas o primeiro
conto, o que abre o livro, enfoca
um padre em crise de fé que decide
não ver o papa. É a representação
desse confronto que o deixou perplexo
entre a figura do papa e a laicidade
do Uruguai?
Schlee – Exatamente. Esse padre,
que, de certa maneira, sou eu, vai
negar tudo, mesmo com todo seu
conhecimento do cerimonial religioso.
Ele não nega apenas a questão
da visita do papa, o que é
elementar, superficial. Ele contesta
tudo, e isso está representado em
pequenos detalhes de sua indumentária,
da desolação do espaço onde
ele vai se meter, uma paisagem à
qual o Papa não iria. Tudo isso está
pesando em um conjunto do qual
tentei fazer a receita desse conto,
que é, de fato, uma história chave
do livro. Depois tem algumas coisas
no livro, como a negação do milagre,
da possibilidade de um milagre...
Eu não escrevi na ordem em
que pus, fui alinhavando até chegar
ao Conto do Turco Jaber, que é um
conto louco, que denuncia, entre
outras coisas, essa questão da gauchidade.
Porque nós temos uma dificuldade
muito grande de sermos
sul-rio-grandenses. O gentílico é
dominado pela palavra “gaúcho”,
que se tornou sinônimo. A distância
é tão grande entre o gentílico e
o significado maior da palavra
“gaúcho” que escandaliza.
CAM (ZH) – Por que o conto? Ao
longo de décadas de carreira, o senhor
escreveu um único romance, e
um livro de contos que se interligam,
mas permaneceu focado na
forma curta. Essa preferência é uma
questão de fôlego literário?
Schlee – Acho que sim. Tem aquela
ideia do Cortázar de que o conto é
um punch, como no boxe, no qual
a gente luta com o leitor e tem a
chance de ganhar por nocaute. No
romance, a gente ganha por pontos.
Acho que por trás disso está a capacidade
que a gente possa ter de tratar
de um assunto de modo a
manter o leitor preso a cada parágrafo
ou a cada página. O conto
me garante também a proximidade
do final. É um tiro curto, são mil
metros no máximo, numa cancha
reta, uma carreira de fôlego curto.
CAM (ZH) – E o que o leva a Don
Frutos, um romance de 600 páginas?
Schlee – Eu não tinha alternativa.
Estava atulhado de informação e
comprometido com a necessidade de
abordar o fato de que Fructuoso Rivera,
duas vezes presidente do Uruguai,
esteve em Jaguarão, minha
terra... Um sujeito desses passando
pela minha cidade não pode me escapar.
Então eu tive que me atirar
em cima dessa história, com a ajuda
de um pesquisador chamado Amilcar
Brum, que se deu ao trabalho de
ir a Montevidéu para desencavar
tanto material que eu poderia ter escrito
três livros, separando por
temas. Por exemplo, coisas que não
aparecem muito no livro, como a intervenção
brasileira, uruguaia e argentina
no Paraguai, que não está lá
porque o Rivera morreu antes. Mas
eu tinha o tema do Rivera em Jaguarão
e por ali fiquei.
CAM (ZH) – Don Frutos parece
singular não só pela extensão. É a
única história em que o senhor enfoca
diretamente uma figura de
poder. O fato de Rivera estar
doente quando chega a Jaguarão
foi o elemento que tornou esse
vulto “humano” para ser abarcado
pela sua ficção?
Schlee – Exato. No primeiro capítulo
do Don Frutos, a decadência
física dele é notória, com o homem
se mijando, dependendo da mulher
e de um outro cara para ajudar
a se movimentar, sem ter mais
nada. E adiante no romance, a
morte do Rivera pode ser lida de várias
maneiras, até mesmo por quem
domina a grande literatura uruguaia
moderna, ao saber que aquele militar
que era o secretário particular do
Rivera, Onetti, era de fato parente
do Juan Carlos Onetti. Há um falso
diálogo final, no qual Rivera se refere
a seu ajudante Capitão Onetti,
que é feito com uma colagem de textos
do Onetti escritor.
CAM (ZH) – Havia, então, uma dificuldade
em lidar com o caráter
biográfico da narrativa de um símbolo
político, dificuldade expressa
na estrutura do livro?
Schlee – Tem outras coisas, como
por exemplo a vinculação com os
índios, ou o fato de ele os ter traído
ou não, aquela famosa matança dos
charruas. Eu estava sempre no fio
da faca. O que eu tenho de documentação
real do Rivera, conseguida pelo Amilcar Brum, são papéis
do governo, da Assembleia
Constituinte, da Câmara, do Senado,
das igrejas. Agora, biografias
do Rivera, eu tive que repassar
todas as que havia disponíveis. Para
as escritas pelos blancos, o Rivera
era um bandido, ladrão, safado.
Para os colorados, era um herói nacional,
fundador do país. Eu tive
que ficar em cima disso, e em nenhum
momento pretendi que o leitor
acreditasse que ele era bom ou
mau, eu queria, como fiz em toda
minha ficção, fugir do maniqueísmo.
CAM (ZH) – O senhor é conhecido
no Rio Grande do Sul e no
Uruguai, mas não no Brasil. Crê
que paga o preço por lidar com um
território ficcional tão restrito?
Schlee – No Uruguai eu sou considerado
autor uruguaio, e fiz parte de
uma coleção publicada pela editora
Banda Oriental. Mas eu não quero
me enganar em cima de proporções.
Se em um país com 3 milhões de habitantes
e um território menor do
que o RS, se lá eu sou muito mais
conhecido, proporcionalmente, do
que no Brasil, é porque não há proporcionalidade
cabível entre Brasil e
Uruguai. A minha literatura, que
pode ser muito conhecida dentro do
Uruguai, é virtualmente desconhecida
no Brasil, primeiro pela dificuldade
temática. O meu mundo
literário tem pouco a ver com o Brasil.
E não sairei desse mundo em um
esforço falso para ganhar leitores,
porque se eu deixá-lo, estou perdido.
CAM (ZH) – O senhor lida com o
lado B da mitologia da formação do
território. Quando lança Contos de
Futebol, esse olhar se dirige ao lado
avesso de outra mitologia, esta contemporânea,
a do futebol. Foi um
passo consciente?
Schlee – Não, eu queria apenas escrever
um livro de futebol. A explicação
está em um conto chamado
Encanto de Futebol, cujo título diz
tudo. Esse “encanto de futebol”
contaminou uma série de coisas relacionadas
à minha vida, o encanto
com o futebol uruguaio em particular.
Por isso esse livro saiu como
Cuentos de Fútbol primeiro no
Uruguai. É um livro uruguaio,
ainda que não tanto como o Limites
do Impossível e principalmente
O Dia em que o Papa Foi a Melo.
CAM (ZH) – Em Contos de Verdades,
o senhor escreve “causos”,
mas os chama de “verdades”,
mesmo sendo histórias que se apresentam
como verdadeiras, mas
podem não ser.
Schlee – Eu não havia pensado
nisso, mas é assim mesmo. Eu estou
falando de “verdades” nesse livro
mais ou menos do mesmo jeito que
se desenvolvem os “causos”, as “fofocas”,
para usar uma expressão
mais vulgar, e que dão origem à
construção de uma verdade que não
é necessariamente verdadeira.
CAM (ZH) – Em Contos de Sempre
e Uma Terra Só seus personagens
se expressam em uma mistura
de espanhol e português, como na
fronteira. A partir de Linha Divisória,
não apenas o personagem no
diálogo, mas o próprio narrador
deixa um idioma contaminar o
outro. Por quê?
Schlee – Eu aprendi que é possível
o narrador assumir a maneira de ser
do personagem, deixando de narrar
à sua própria maneira. Então, no
momento em que estou fazendo
uma narrativa referente a um personagem,
eu me sinto autorizado a
usar esse recurso. Porque há uma
dificuldade muito grande para
qualquer autor que, como eu, trabalha
com personagens rústicos, geralmente
pobres, sem educação
formal, como são os párias. Os
meus personagens são os rejeitados
da sorte. Essas pessoas não têm a
minha formação, mas têm seu próprio
modo de pensar. E quando
tento reproduzir o pensamento
deles, eu me sinto autorizado a usar
esse recurso. É uma coisa que eu
vejo que enriqueceu muito a literatura
do Simões Lopes Neto, por
exemplo.
CAM (ZH) – Os Limites do Impossível:
Contos Gardelianos é um
livro em que o senhor mescla conto
e novela ao narrar uma trama única
tecida das histórias das mulheres
que orbitaram o pai de Carlos Gardel.
Como chegou a essa história?
Schlee – Essa história eu resolvi escrever
no momento em que tive
certeza de que era preciso denunciar
as arbitrariedades do então presumido
pai de Carlos Gardel a partir
de tudo o que ele fez na política do
Uruguai, mas particularmente em
relação ao nascimento desse filho,
fruto de estupro e incesto. Então
achei que a narração não deveria se
referir diretamente a ele, mas às
mulheres que tiveram a ver, direta
ou indiretamente, com o nascimento
de Carlos Gardel.
CAM (ZH) – O Dia em que o
Papa foi a Melo e Os Limites do
Impossível, a bem dizer, anteciparam
respectivamente O Banheiro
do Papa, longa ficcional de Cesar
Charlone, e o documentário El
Padre de Gardel, que teve uma sessão
recente na Capital. Como vê
essa circunstância, uma vez que em
ambos os casos não parece ter havido
menção a seu tratamento anterior
do tema?
Schlee – O que eu fiquei estranhando
é o quanto sou desconhecido.
O Banheiro do Papa tem uma
história que poderia ser inspirada
no Conto V de O Dia em que o
Papa Foi a Melo, também chamado
de Melo Era uma Festa, com todas
aquelas decepções dos personagens...
O clima é o mesmo, os acontecimentos
correspondem, os caras que fizeram o
filme tiveram o mesmo sentimento que
eu tive de identificação com aquelas pobres
pessoas que gastaram os últimos
centavos que tinham, mataram um
leitãozinho de estimação roubaram
uma capivara para poder oferecer
comida aos brasileiros, porque ia ter
40 mil brasileiros lá. Eram pessoas
não à procura de um milagre, mas
buscando criá-lo, e foram frustradas.
O papa passou, virou lixo tudo
aquilo. O filme mostra uma ideia
que está lá no meu conto, a de alguém
que pensa em fazer uma latrina.
Mas o protagonista não está
no conto, a guria que queria ser radioatriz
não está no conto, e aqueles
personagens me emocionaram às
lágrimas. Não tenho do que reclamar,
fico feliz que tenham feito um
filme tão bom. Esse documentário
do Gardel eu não vi. Os fatos, os
acontecimentos históricos que sustentam
a minha ficção no caso dos
Contos Gardelianos, são comprovados
e são os mesmos que devem
ter sustentado o documentário.
Não tenho como me queixar de
nada. Só fico com pena que estejamos
tão perto e tão longe do Uruguai
ao mesmo tempo, o que
comprova que meu mundo literário
é limitado e distante.
CAM (ZH) – Contos da Vida Difícil,
seu livro mais recente, retrata
um momento em que Jaguarão se
torna ponto de passagem do tráfico
de mulheres – na sequência da
construção da ponte que liga a cidade
a Rio Branco, no Uruguai.
Havia a intenção de confrontar essa
ponte, signo de passagem, com a situação
dessas mulheres, presas à
prostituição no município?
Schlee – Bem observado. Se há alguma
possibilidade de encantamento
com esse tema, como
também em relação ao futebol, é no
fato de ser um assunto que Jaguarão
considerou necessário esconder e
fazer de conta que não é parte de
sua memória. Isso aconteceu de
uma forma que eu não procurei explicar,
porque eu próprio não encontro
explicação. Por que esses
fatos raramente respingaram algumas
famílias de Jaguarão? Por que a
maioria das pessoas de Jaguarão esqueceu
disso? Por que não se fala
que o cabaré que foi tão importante,
o do Tomazinho, ainda existe
como prédio pertencente a um
clube social, o Instrução e Recreio?
Os sócios se envergonhariam de
dizer “aqui funcionou um cabaré”?
Não sei se terá sido isso, mas os
acontecimentos eram tão contraditórios
que em cima deles eu tinha
de construir algo.
CAM (ZH) – O primeiro conto
desse livro, Carnet de Divertissement,
é sobre um caderninho de
nomes dos clientes dos cabarés. E o
senhor o compara textualmente a
um “caderno de venda”. Essa frase
tem o intuito de equiparar as mulheres
ali escravizadas a mercadorias
de comércio ?
Schlee – Sim. Ao citar os fregueses
cujos nomes aparecem nesse caderno,
estou denunciando que
muitos deles viraram nomes de rua
e é melhor nem seguir adiante. É
uma justificativa em parte para essa
minha narrativa estar rompendo
com esse pacto de silêncio e esquecimento.
Carlos André Moreira - Jornalista
Jornal Zero Hora - Porto Alegre RS
(26/11/2013) - ©AgênciaRBS - Edições Ardotempo